ARTIGO:

Postado por admin em jan. 09 2012 09:41:00

As recentes decisões do STF sobre o alcance dos poderes correcionais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) trazem à discussão o papel que o sistema de justiça desempenha no Brasil. Esta é uma discussão que direta ou indiretamente afeta a estrutura dos poderes republicanos, sobretudo se considerarmos a dívida que o sistema de justiça tem ante a sociedade brasileira, dívida que decorre da colaboração dessas instituições com as ditaduras que existiram no Brasil. Nunca é demais lembrar que todas as ditaduras do século XX foram jurídicas, que o Estado de Direito poucas vezes se conciliou com o Regime Democrático e que a redemocratização do Brasil é obra da Política. Embora exista um fetiche em torno do direito, foi o Parlamento e os políticos que se opuseram aos regimes de exceção, que no Brasil obtiveram forma constitucional.
 

Com a redemocratização, ainda recente, a questão do controle externo do Judiciário e do Ministério Público brotou normalmente, pois, numa democracia, soberano são os cidadãos, conforme a máxima segundo a qual todo o poder emana do povo. Nesse cenário, exprimem-se as condições para a promulgação da Emenda Constitucional 45, que cria tanto o Conselho Nacional de Justiça quanto o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
 

A criação de ambos os Conselhos decorre da constatação de que o Judiciário e o Ministério Público falharam em desenvolver mecanismos de autocontenção. Por isso eles foram criados e lhes foi conferida a competência concorrente, com o propósito claro de se constituir um mecanismo que pudesse contornar o corporativismo, tornando essas instituições mais transparentes.
 

Assim, uma das tarefas dos Conselhos é a de controlar democraticamente o Judiciário e o Ministério Público, abrindo-os e expondo-os, de modo que sejam submetidos a órgãos aos quais competem estabelecer seus respectivos paradigmas, indo muito além de simples corregedorias. Nesse contexto, surge a controvérsia se as competências de ambos os Conselhos são concorrentes ou subsidiárias.
 

Claro está que a competência concorrente do CNJ e do CNMP não é uma panacéia, nem desobriga o Judiciário e o Ministério Público de estabelecerem mecanismos de autocontrole, capazes de institucionalizar uma correção procedimental, nos âmbitos administrativo, financeiro e correcional.
 

No entanto, é preciso estabelecer parâmetros para a concretização dessa competência concorrente, de modo que ela seja exceção nos procedimentos que tramitam nos respectivos Conselhos. Prima facie, a competência é subsidiária e apenas uma determinação Plenária poderia designar se este ou aquele procedimento deve ser instaurado originariamente nos Conselhos, contornando a instância local (Corregedorias). Mas criar exigências, criar parâmetros é uma faculdade, uma prerrogativa para racionalizar a utilização da competência concorrente, não denotando a sua impossibilidade.
 

Entretanto, no que diz respeito aos poderes do CNJ e do CNMP algumas questões precisam ser levantadas. Em primeiro lugar, chega a ser constrangedor que a antiquada lei que rege a Magistratura nacional tenha sido outorgada pelo General Ernesto Geisel, em plena ditadura militar, por si só incompatível com o regime democrático. Em segundo lugar, tanto o Judiciário quanto o Ministério Público dos Estados são subrepresentados em ambos os Conselhos: é injustificável que cerca de 15 mil juízes estaduais tenham apenas 02 assentos no CNJ e que praticamente o mesmo número de promotores de justiça tenham somente 03 representantes no CNMP.
 

Sabe-se que as competências e a capilaridade do sistema de justiça estão depositadas no Judiciário e no Ministério Público dos Estados. Desse modo, qualquer análise sobre o alcance dos poderes do CNJ e do CNMP precisa enfrentar essa questão. Desse modo, é bastante elucidativo que a questão da corrupção, nesta seara, seja explicitada por intermédio da disputa entre o federal e o estadual, como se se tratasse de uma tentativa de se trazer modernidade à paróquia, na velha tradição das expedições civilizadoras.
 

Convém explicitar que os desafios que se apresentam ao Judiciário e ao Ministério Público dos Estados são os mais significativos, pois eles têm o maior número de pessoal, estão presentes em quase todos os municípios brasileiros, são eles que acompanham o desenrolar dos acontecimentos nacionais e têm que fazer os ajustes entre as demandas crescentes por seus serviços e as suas respectivas limitações orçamentárias. Se é certo que existem problemas, e problemas os mais diversos, também o é que os mesmos problemas existem em todas as esferas do sistema de justiça, sem exceção.
 

A criação dos Conselhos Nacionais também está atrelada a uma profunda inoperância das diversas Corregedorias. Quer dizer: a burocracia e o corporativismo, como bem alertou Raymundo Faoro, se apropriaram dessas instituições. Assim, a questão precisa ser colocada em termos mais radicais: a existência do CNMP e do CNJ não desobriga as Corregedorias locais, nem soluciona os problemas existentes, nem torna mais puras tais instituições.
 

Aliás, as estruturas das Corregedorias Nacionais não têm o condão de modificar vícios. Muitas vezes o que ocorre, com as inspeções por elas promovidas, é a convalidação de equívocos. Nessa seara, é necessário redefinir o papel das Corregedorias locais, ou seja: (I) é preciso estruturá-las, aparelhá-las, com o propósito de torná-las efetivas e (II) que lhes sejam imputadas responsabilidades. Então, ao mesmo tempo em que são criados mecanismos e estruturas de controles, são estabelecidas responsabilidades pela inação.
 

No entanto, o papel correcional dos Conselhos deveria ser secundário, cabendo-lhes um papel pedagógico, que fosse capaz de estimular o desenvolvimento de mecanismos que coíbam vícios. As principais tarefas dos Conselhos Nacionais são a de coordenação, a de orientação, a de construção de paradigmas aos seus respectivos aconselhados.
 

Ante os desafios de uma sociedade de massa, em que o recurso à jurisdição é um componente da cidadania, na qual os conflitos têm no sistema de justiça um de seus protagonistas, reduzir a atuação dos Conselhos à seara correcional é dar seguimento à tese segundo a qual todos somos corruptos.
 

Diante desses desafios, cabe aos Conselhos a tarefa de elaboração, de construção de paradigmas. Instituições tão dispendiosas precisam oferecer saídas aos paradoxos da modernidade. O que os Conselhos têm a dizer ante os desafios de se tutelar direitos numa sociedade de massa? Decisões judiciais podem ser produzidas em escala industrial sem solapar direitos e garantias fundamentais? O que fazer ante o crime organizado e o narcotráfico?
 

Questões atinentes ao futuro dessas instituições não podem ser eclipsadas por uma disputa sobre competências, que pode facilmente ser resolvida pelo Congresso Nacional. É absolutamente fundamental que outras sejam abordadas, como por exemplo: o problema da segurança institucional, pois com a atual forma de atuação e as limitações próprias às designações, essa questão é intransponível; as atuações, com competências definidas restritivamente, se circunscrevem às questões geográficas ou ao ramo a que se pertence, tornam impotentes e fechadas sobre si mesmas essas instituições e a ideia de que somos todos corruptos, com a respectiva criminalização e subordinação da sociedade pelo direito, faz com que esse discurso se volte contra o Judiciário e contra o Ministério Público, fazendo da busca pelos corruptos a pedra de toque dessas instituições, tanto intrínseca quanto extrinsecamente.
 

Convém que este debate aponte caminhos para a Magistratura e para o Ministério Público, mas também que auxilie os Conselhos Nacionais a refletirem sobre seus papéis. A mim, a questão das competências, se concorrente ou subsidiária, não é a mãe das questões, mas deveria se inserir numa perspectiva que entenda os Conselhos, a Magistratura e o Ministério Público não como instituições ensimesmadas, mas como serviços à disposição do cidadão brasileiro.
 

Ademais, a última palavra sobre essa questão não cabe ao Supremo Tribunal Federal, mas ao Congresso Nacional, pois numa democracia a tarefa de errar por último está confiada aos cidadãos. É isto o que designamos por soberania popular.


Luiz Moreira
Conselheiro Nacional do Ministério Público
Doutor em Direito pela UFMG