NOTA TÉCNICA 02/2019

Postado por admin em jul. 18 2019 10:04:36

O Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal – GNCCRIM, órgão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG), pela presente Nota Técnica, manifesta-se publicamente em relação à recente decisão liminar do Min. Dias Toffoli, do STF, no Recurso Extraordinário n.º 1055941/SP, nos seguintes termos:

A Constituição da República, em seu art. 5º, XII, estabelece que:

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”.


Após anos de vigência da Constituição da República, foi publicada a Lei Complementar nº 105/2001, que busca harmonizar o direito constitucional de inviolabilidade do sigilo de dados bancários com o dever constitucional de pagar tributos segundo o princípio da isonomia.

A Lei Complementar nº 105/2001 teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 2.386/DF, em conjunto com outras três ações diretas de inconstitucionalidade. O acórdão transitou em julgado em 29/10/2016 e tem a seguinte ementa:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Julgamento conjunto das ADI nº 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. Normas federais relativas ao sigilo das operações de instituições financeiras. Decreto nº 4.545/2002. Exaurimento da eficácia. Perda parcial do objeto da ação direta nº 2.859. Expressão ‘do inquérito ou’, constante no § 4º do art. 1º, da Lei Complementar nº 105/2001. Acesso ao sigilo bancário nos autos do inquérito policial. Possibilidade. Precedentes. Art. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e seus decretos regulamentadores. Ausência de quebra de sigilo e de ofensa a direito fundamental. Confluência entre os deveres do contribuinte (o dever fundamental de pagar tributos) e os deveres do Fisco (o dever de bem tributar e fiscalizar). Compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de compartilhamento de informações bancárias. Art. 1º da Lei Complementar nº 104/2001. Ausência de quebra de sigilo. Art. 3º, § 3º, da LC 105/2001. Informações necessárias à defesa judicial da atuação do Fisco. Constitucionalidade dos preceitos impugnados. ADI nº 2.859. Ação que se conhece em parte e, na parte conhecida, é julgada improcedente. ADI nº 2.390, 2.386, 2.397. Ações conhecidas e julgadas improcedentes”.

Assim, tem-se que os seguintes dispositivos da Lei Complementar nº 105/2001 estão de acordo com a Constituição da República:

“Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.
(...)
§ 3º Não constitui violação do dever de sigilo:
(...)
IV – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa;
(...)
VI – a prestação de informações nos termos e condições estabelecidos nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 9º desta Lei Complementar.”


“Art. 5º O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
(...)
§ 2º As informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”.


Tais padrões vêm se mantido desde a publicação da Lei Complementar nº 105/2001, tendo sido confirmados pelo Supremo Tribunal Federal em ações diretas transitadas em julgado em 29/10/2016, com eficácia erga omnes e efeito vinculante.

Ontem, o Supremo Tribunal Federal, em decisão liminar do Min. Dias Toffoli proferida no RE nº 1055941/SP, determinou a suspensão do processamento de:

1. “Todos os processos judiciais em andamento, que tramitem no território nacional e versem sobre o Tema 990 da Gestão por Temas da Repercussão Geral”;

2. “Todos os inquéritos e procedimentos de investigação criminal (PIC’s), atinentes aos Ministérios Públicos Federal e estaduais, em trâmite no território nacional, que foram instaurados à míngua de supervisão do Poder Judiciário e de sua prévia autorização sobre os dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN), que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais, consoante decidido pela Corte”.


A presente nota técnica tem por objetivo analisar os fundamentos e efeitos práticos de tal decisão liminar no âmbito de atuação do Ministério Público.

É o que importa relatar.

Inicialmente, importa destacar que a decisão liminar do Min. Dias Toffoli faz reiteradas referências ao texto da Lei Complementar nº 105/2001 e aos acórdãos do Supremo Tribunal Federal que, em sede de controle concentrado, reconheceram a constitucionalidade da referida lei, em decisão definitiva.

Ao contrário do que tem sido noticiado, o Min. Dias Toffoli não determinou a suspensão indiscriminada de toda e qualquer investigação que conte, em seu bojo, com dados bancários fornecidos por órgãos administrativos de fiscalização e controle sem prévia autorização judicial.

Na realidade, a decisão é enfática ao afirmar que a suspensão se limita a casos que utilizem dados que excedam os seguintes limites, fixados pela Lei Complementar nº 105/2001: a) identificação dos titulares das operações; b) identificação dos montantes globais mensalmente movimentados.

Sem entrar no mérito do caso específico em que a decisão liminar foi proferida, que tramita sob sigilo legal e cuja situação fática somente está acessível aos profissionais que nele atuam, a tese jurídica que fundamenta a decisão do Min. Dias Toffoli está de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Referida decisão não impede a utilização absoluta de relatórios de inteligência financeira – RIF produzidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF ou documentos de natureza semelhante.

Na realidade, a regra é que os relatórios de inteligência financeira e assemelhados respeitem os limites fixados pela Lei Complementar nº 105/2001 e esse padrão tem sido seguido nas comunicações entre COAF e Ministério Público.

A existência de dados em um RIF/COAF que excedam os limites de identificação de titulares das operações e de montantes globais movimentados constitui situação anômala, devendo ser tratada como tal.

Portanto, em regra, não há necessidade de autorização judicial para que relatórios de inteligência financeira do COAF ou documentos de natureza semelhante sejam apresentados ao Ministério Público, por parte de órgãos administrativos de fiscalização e controle.

Só haverá necessidade de autorização judicial quando os dados excederem os limites fixados pela Lei Complementar nº 105/2001, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF: a) identificação dos titulares das operações; b) identificação dos montantes globais mensalmente movimentados.

Como já exposto, a regra é que os dados contidos em relatórios de inteligência financeira produzidos pelo COAF e documentos de natureza semelhante respeitem, integralmente, tais limites legais, de modo que podem ser fornecidos e utilizados pelo Ministério Público sem prévia autorização judicial.

A partir da análise dos dados, o Ministério Público poderá dar início a uma investigação criminal, juntar o relatório de inteligência financeira a alguma investigação em curso ou, se necessário, requerer em juízo a quebra do sigilo de dados bancários do investigado, para esclarecimento aprofundado de indícios de ilicitude. Em tais situações, haverá a transferência do sigilo legal do COAF ao Ministério Público, que deverá zelar pela proteção dos dados.

Nada impede, portanto, que um relatório de inteligência financeira produzido pelo COAF seja utilizado para instruir investigações criminais ou ações penais, enquanto documento de informação (status dado pelo próprio COAF). Registre-se que, no âmbito da operação Lava-Jato, os RIFs produzidos pelo COAF têm sido rotineiramente utilizados na instrução de ações penais, com acolhimento nas diversas instâncias do Poder Judiciário.

Importa destacar que o Conselho Nacional do Ministério Público expediu a Recomendação de Caráter Geral nº 04/2017, da lavra do Corregedor Nacional do Ministério Público, estabelecendo diretrizes para o tratamento, o fluxo procedimental e a metodologia de utilização dos dados oriundos de Relatórios de Inteligência Financeira do COAF, no âmbito do Ministério Público.

Referido ato normativo da Corregedoria Nacional do Ministério Público sequer limita a utilização dos RIFs/COAF a órgãos de investigação criminal, facultando o uso também na seara cível quanto à improbidade administrativa. Confira-se:

“Art. 1º. Os Relatórios de Inteligência espontâneos encaminhados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras ao Ministério Público devem ser imediatamente registrados como Notícias de Fato e distribuídos ao órgão de execução com atribuições para a instauração do procedimento apuratório cabível, observadas as regras de distribuição aplicáveis.

Art. 2º. Os Relatórios de Inteligência espontâneos que contenham dados relacionados a agentes públicos devem ser encaminhados tanto ao órgão de persecução criminal como àquele com atribuições relacionadas à improbidade administrativa.
(...)
Art. 5º Os Relatórios de Inteligência Financeira encaminhados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras mediante solicitação do Ministério Público devem ser formalizados como diligência investigatória, com juntada no caderno procedimental correspondente.
(...)
Art. 8º. O recebimento de comunicações espontâneas e a solicitação de informações ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras deve ser realizado no ambiente do Sistema Eletrônico de Intercâmbio - SEI-c do órgão.
(...)
Art. 10. As informações constantes nos Relatórios de Inteligência Financeira devem ser inseridas em bancos de dados que permitam o confronto com outras informações e futuras consultas”.


Assim, percebe-se que os relatórios de inteligência financeira devem ser encaminhados pelo COAF ao Ministério Público em ambiente virtual seguro, com transparência e celeridade, sem que se constitua violação a sigilo bancário.

Ao analisar o inteiro teor da decisão liminar proferida pelo Min. Dias Toffoli no RE nº 1055941/SP, verifica-se que todas as investigações criminais e ações judiciais que respeitem os limites legais devem continuar sua tramitação normal.

Na realidade, a decisão liminar declara enfaticamente que ela se limita a casos em que houve utilização de dados além da identificação dos titulares das operações e dos montantes globais movimentados. Confira-se:

“Isso porque, o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade pelo Plenário no qual se reconheceu a constitucionalidade LC nº 105/2001 (ADI’s nsº 2.386 2.390 2.397 e 2.859, todas de minha relatoria, julg. 24/2/16, DJe 21/10/16), foi enfático no sentido de que o acesso às operações bancárias se limita à identificação dos titulares das operações e dos montantes globais mensalmente movimentados, ou seja, dados genéricos e cadastrais dos correntistas, vedada a inclusão de qualquer elemento que permita identificar sua origem ou [a] natureza dos gastos a partir deles efetuados, como prevê a própria LC nº 105/2001.
(...)
De mais a mais, forte no poder geral de cautela, assinalo que essa decisão se estende aos inquéritos em trâmite no território nacional, que foram instaurados à míngua de supervisão do Poder Judiciário e de sua prévia autorização sobre os dados compartilhados pelos órgãos administrativos de fiscalização e controle que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais, consoante decidido pela Corte (v.g. ADI’s nsº 2.386, 2.390, 2.397 e 2.859, Plenário, todas de minha relatoria, julg. 24/2/16, DJe 21/10/16).
(...)
Deve ficar consignado, contudo, que essa decisão não atinge as ações penais e/ou procedimentos investigativos (Inquéritos ou PIC’s), nos quais os dados compartilhados pelos órgãos administrativos de fiscalização e controle, que foram além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais, ocorreram com a devida supervisão do Poder Judiciário e com a sua prévia autorização”.

Verifica-se, pois, que a suspensão liminar determinada pelo Supremo Tribunal Federal se limita a casos que utilizem dados que excedam a identificação dos titulares das operações e dos montantes globais movimentados e que, cumulativamente, tenham sido fornecidos ao Ministério Público sem prévia autorização judicial.

Assim, em regra, as investigações criminais e ações penais que utilizem relatórios de inteligência financeira produzidos pelo COAF, ou documentos de natureza semelhante, devem continuar a tramitar normalmente, pois o padrão de tais documentos é não exceder os limites fixados na decisão liminar do Min. Dias Toffoli, que repete os marcos já estabelecidos na Lei Complementar nº 105/2001 e em decisões definitivas do STF em sede de controle concentrado.

Ademais, registre-se que a utilização de relatórios de inteligência financeira do COAF é lícita, tanto na fase de investigação criminal quanto de instrução em juízo, enquanto documento de informação. Nada há de irregular, portanto, em sua juntada aos autos de investigações criminais ou ações penais, devendo-se zelar pelo sigilo dos dados.

Desta forma, portanto, posiciona-se o Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal – GNCCRIM, levando ao conhecimento desse Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG).

Porto Alegre, 17 de julho de 2019.

FABIANO DALLAZEN,
Procurador-Geral do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e Presidente do GNCCRIM.

Confira a íntegra da nota técnica